
Querido leitor, que bom novamente lhe encontrar por aqui. Peço licença para uma conversa séria — daquelas que a gente evita, mas que precisa ter.
Durante anos, o Brasil ouviu e repetiu a história do boto-cor-de-rosa — o encantado que sai dos rios amazônicos nas noites de festa, seduz mulheres e desaparece ao amanhecer. Uma lenda bonita, contada nas rodas de conversa e nas escolas, que parecia inofensiva… até que olhamos mais de perto. A realidade, nesses casos, infelizmente, é cruel, insensível e repugnante.
Por trás dessa fantasia, há uma dor que não é lenda.
Pesquisas e relatos apontam que, em muitas comunidades ribeirinhas, o “boto” serviu como desculpa para esconder abusos sexuais. Quando uma menina aparecia grávida, dizia-se que “foi o boto”. Assim, o agressor — muitas vezes pai, tio ou avô — permanecia protegido pelo silêncio coletivo.
A lenda, que deveria ser parte do nosso imaginário cultural, acabou virando uma cortina de fumaça para crimes reais.
Enquanto o mito ganhava voz, as vítimas eram caladas.
Enquanto o encantado era lembrado, as meninas eram esquecidas.
E é aqui que o assunto deixa de ser apenas da Amazônia.
Porque quando uma cultura usa o mito para acobertar a violência, não é só a floresta que adoece — é o país inteiro.
A Amazônia não é um território distante e exótico; é parte viva do Brasil, com seus povos, suas dores e suas verdades.
Se lá o silêncio continua protegendo os agressores, todos nós temos responsabilidade nesse eco.
Revisitar a cultura não é destruir tradições — é reconhecer que histórias também envelhecem, e precisam ser contadas de novo, com verdade e respeito.
A beleza da Amazônia está em sua força, mas essa força não pode servir de manto para esconder a violência.
Nenhuma criança deve ser usada como escudo.
Nenhuma lenda deve servir de desculpa.
E nenhuma cultura é intocável quando oprime os mais frágeis.
A Amazônia é nossa — suas águas, suas histórias e também suas feridas.
Romper o silêncio é o primeiro passo para curar o Brasil que insiste em esconder suas próprias sombras.
Receba, leitor, como sempre, um abraço na medida da sua necessidade.