
Alguns encontros da vida nos colocam diante de situações que não têm resposta pronta. Uma amiga me procurou há algum tempo para dividir comigo uma angústia: sua filha, de apenas quatro anos, havia sido agredida por outra criança dentro da escola. A autora da agressão era uma aluna com diagnóstico de autismo.
O relato dela veio carregado de sentimentos. De um lado, o medo da filha em retornar ao ambiente escolar. De outro, a consciência de que se tratava de uma situação delicada, pois a criança envolvida também era apenas uma criança, com suas próprias fragilidades e necessidades. Minha amiga, professora dedicada e competente, não se fechou apenas na dor materna: por várias vezes, durante nossa conversa, colocou-se no lugar da família da outra criança.
Mas ela também é mãe. E ser mãe é carregar o dever objetivo de cuidado, amparado pelo artigo 227 da Constituição Federal, que coloca a proteção integral da criança e do adolescente como prioridade absoluta da família, da sociedade e do Estado. Ao confiar sua filha à escola, esperava recebê-la de volta com a mesma integridade com que a deixou.
Aqui entra a responsabilidade da instituição de ensino. Pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394/1996) e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei nº 8.069/1990), a escola tem não só o dever pedagógico, mas também o dever de zelar pela segurança física e emocional dos alunos. O incidente, portanto, exige reflexão e medidas para evitar a repetição.
Mas há outro lado, que não pode ser esquecido. A criança com autismo é também sujeito de direitos. O Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015) garante à pessoa com deficiência — e isso inclui crianças com transtorno do espectro autista — o direito à educação inclusiva, ao atendimento especializado e ao respeito à sua dignidade. A legislação impõe à escola a obrigação de oferecer suporte adequado, acompanhamento individualizado e meios para que a criança se desenvolva plenamente.
Assim, temos dois princípios constitucionais que não se excluem, mas se complementam: o direito à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição) e o direito à proteção integral da criança (art. 227). A escola deve atuar como ponte, mediando, apoiando e garantindo que nenhuma das crianças envolvidas — nem a que sofreu, nem a que praticou a agressão — seja invisibilizada.
Naquele dia, como amigo, minha resposta foi simples:
“Mãe, converse com a escola, converse com os pais, converse com sua filha. Seja firme, mostre que entende que existem questões que fogem ao controle, mas que o ocorrido não pode ser naturalizado. Diga com clareza que, nas mesmas condições em que deixa sua filha na escola, precisa tê-la de volta em segurança. Mas não esqueça: a outra família merece ainda mais apoio, mais atenção e mais acolhimento. Porque educar é tarefa coletiva.”
O que mais me impressionou foi a postura dela. Mesmo com a filha machucada, não deixou de reconhecer o valor da empatia. Compreendeu que justiça não é vingança, mas equilíbrio. Que dignidade não é privilégio, mas direito de todos.
Este episódio nos ensina que não existe caminho único quando se trata de direitos fundamentais. Toda criança tem direito a ser protegida, e toda criança tem direito a ser incluída. A escola, enquanto espaço de formação, não pode se eximir de sua responsabilidade: precisa ser lugar seguro, de diálogo e de aprendizado para todos.
A dignidade da pessoa humana, que é fundamento da República, se manifesta justamente nesses encontros difíceis, onde a dor de um não apaga a necessidade de cuidado do outro. É nesses momentos que se revela a grandeza de quem consegue olhar para além de si mesmo e reconhecer que o direito é, antes de tudo, instrumento de humanidade.
Fica aqui meu respeito e admiração à coragem da mãe que, mesmo diante da dor, escolheu a empatia como resposta. E que possamos, todos nós, aprender com esse gesto: a dignidade não se divide, multiplica-se.
Aos nossos leitores, um abraço fraterno — desta vez, cheio de diferenças positivas.