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Liberdade e/ou proteção

Entre a autonomia e o cuidado, a curatela exige mais que legalidade: exige humanidade.
6 de julho de 2025
Foto: Ilustração

E se você não pudesse mais se representar? Quem você escolheria para tomar decisões por você? Vou mais longe: e se você sequer pudesse recusar ou escolher?

Olá, querido leitor. Hoje, escrevo com o coração mais apertado. A semana foi marcada por uma daquelas decisões que, embora necessárias, nunca saem leves do nosso escritório. Saiu a sentença de um processo de curatela que acompanhei por quase dois anos. E quero compartilhar um pouco com você — não por vaidade, mas por humanidade.

Uma mãe me procurou porque precisava tomar decisões em nome do filho. Um jovem de 20 anos, pessoa com deficiência, que não tem condições de lidar com questões jurídicas sozinho — como o recebimento do seu benefício. O INSS exigiu a curatela para continuar pagando o que é de direito do rapaz. E ali começa uma batalha que vai muito além de papel e carimbo.

Para quem olha de fora, pode parecer simples: alguém representa outra pessoa. Mas não é só isso. É muito mais. A curatela é um processo duro. Porque mexe com algo sagrado: a liberdade. A liberdade de decidir, de assinar, de dizer “quero” ou “não quero”. E, quando o Estado permite que alguém assuma isso por outra pessoa, está dizendo que alguém não tem plena capacidade de se representar. Isso dói. Isso pesa.

Essa mãe largou tudo. Trabalho, rotina, sonhos. Passou a viver para o filho. Todos os dias. Sem pausa. Sem folga. O amor dela é indiscutível. Mas, ainda assim, quando a gente entra com um pedido de curatela, a sensação é de estar tirando um pedaço da autonomia de alguém. Mesmo que seja por amor. Mesmo que seja necessário.

A curatela precisa ser vista com responsabilidade. Não é uma simples “procuração judicial”. É uma medida extrema. E é por isso que eu, pessoalmente, tenho dificuldade com esses processos. Porque sei o quanto eles invadem. Invadem a intimidade, invadem a dignidade — ainda que com boa intenção.

Mas também é preciso reconhecer: há casos em que é a única forma de proteger. De garantir direitos. De fazer com que o Estado enxergue aquele filho como sujeito de direitos, mesmo que ele não consiga expressá-los sozinho.

É um paradoxo. Você mexe na liberdade para garantir dignidade.

Por isso, minha palavra hoje é de respeito. Respeito à mãe, que é curadora. Respeito ao filho, que é pessoa com deficiência, com sentimentos, medos, vontades e sonhos. Respeito à justiça, que precisa equilibrar razão e sensibilidade. Respeito à vida, que nos ensina todos os dias que ninguém vive só — e que, quando uma pessoa com deficiência sofre, sofre também toda a família. Sofre o coletivo.

A diferença não nos diminui. A deficiência não nos desumaniza. E a curatela, embora dolorosa, pode ser um gesto de proteção — desde que feita com amor, responsabilidade e consciência de que liberdade é valor constitucional e humano. O Código Civil brasileiro, no artigo 1.767, prevê expressamente os casos em que a curatela pode ser aplicada, mas, mesmo estando na lei, ela deve ser sempre a última medida. Porque, por trás de cada processo, existe uma vida real, uma história única, uma dignidade que precisa ser respeitada com seriedade e sensibilidade.

Receba, mais uma vez, meu abraço fraterno — na medida da sua necessidade.

De um humanista,

Donizete

Sobre a Coluna

A coluna de Donizete Furlan será publicada semanalmente no Diário de Ribeirão Branco, sempre com textos que entrelaçam Direito, memória e cotidiano. Um convite ao pensamento crítico com raízes no interior.

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